segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A BÍBLIA DOS SETENTA - LXX

EVANS, C.A. Versions of the Old Testament. In: Ancient Texts for New Testament Studies: A guide to the background literature. Massachusetts: Hendrickson Publishers, 2005. Pgs.156-159. D.F.IZIDRO,tradutor (c) 2015.


Septuaginta. A Septuaginta (do latim septuaginta, “setenta”) é a tradução grega do Antigo Testamento (incluindo os Apócrifos) e é abreviada como LXX, o numeral romano para setenta. 

O nome vem da lenda encontrada no Pseudepígrafo Carta de Aristéias (veja cap.2), no qual é reivindicado que o rei Ptolomeu Filadelfo (285-247 A.E.C) comissionou para a biblioteca real 72 escribas palestinenses para traduzir o Pentateuco hebraico para o grego. 

Em isolamento na ilha de Faros os escribas terminaram a tarefa em 72 dias. A história é recontada por Josefo (cf.Ant.12.2.1 §11-12.2.15§118). 

Filon mesmo aceitou a estória e considerou a tradução como inspirada, dada, como foi, por ditado divino (cf.Moses 2.7§37), uma visão que veio a ser tomada por muitos dos Pais primitivos da igreja Cristã. Por diversas razões, o relato lendário de Aristéias não pode ser aceito. 

Embora os dados da LXX, no mínimo o que diz respeito ao Pentateuco, possam ser antigos como propõe Aristéias, a razão para a tradução foi tornar a Bíblia mais facilmente acessível aos judeus que falavam grego, em Alexandria. As porções restantes da Bíblia foram traduzidas em gerações sucessivas, talvez não sendo completada até o primeiro século E.C. 

Evidentemente, diversos tradutores foram envolvidos nesse longo processo, pois o estilo varia de um livro para outro. A LXX é uma importante testemunha pré-MT. Algumas de suas leituras que diferem do MT concordam com leituras encontradas nos Rolos do Mar Morto. 

Algumas de suas diferentes leituras aparecem no NT, cujos autores seguem a LXX em mais da metade de suas citações do AT. 

A diversidade do texto do AT grego do primeiro século tem sido documentada pela descoberta e publicação de 8HevXIIgr, um fragmento do rolo grego dos Profetas Menores (veja Tov 1990). 

Este texto difere da LXX em diversos pontos, e concorda com no mínimo três das recensões (Aquila, Símaco e Teodócio) em diversos pontos. O principal texto da LXX é A.Rahfs, Septuaginta (2 vols.; Stuttgart: Württembergische Bibelanstalt, 1935).

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Introdução ao Profetismo Bíblico
 
D.F.Izidro

1. O Profetismo no Mundo Antigo1
 
1.1. Consultando a Divindade
 
No mundo antigo, tudo pertencia à ordem do religioso. Isto explica porque se consultava a divindade sobre toda e qualquer questão. Todos os setores da vida inspiravam a consulta à divindade por intermédio dos profetas com o fim de saber sua vontade sobre variados assuntos.
 
Uma das preocupações essenciais do homem era a de conhecer a vontade dos deuses; isso pressupõe, portanto, a possibilidade de a divindade comunicar aos homens sua vontade. Os profetas bíblicos são, portanto, representantes de um fenômeno muito antigo e conhecido já na Mesopotâmia e no Egito antes mesmo da história patriarcal, desde o terceiro milênio antes de Cristo.
 
1.2. O ofício dos antigos profetas
 
O termo “profeta”, vem do grego  (profetes [profeta]) e significa aquele que fala na frente ou em lugar de outrem; trata-se de um representante e/ou porta-voz da divindade diante dos homens, portanto2. Antes mesmo da civilização grega e da tradição bíblica israelita, já existia e atuava a profissão de profeta.
 
São muitas as semelhanças do profetismo pagão antigo pré-bíblico com o profetismo bíblico, especialmente quanto às fórmulas utilizadas, as técnicas, alguns conceitos e aquilo que pode se chamar de “experiência profética”. No entanto, o profetismo bíblico se distingue radicalmente do profetismo pagão antigo no que diz respeito ao conteúdo de seus oráculos e ao fato de que não se funda ou se limita à mera consulta dos homens aos deuses para obter respostas – o Deus de Israel pode e costuma comunicar-se e revelar sua vontade por sua própria e soberana iniciativa.
 
2. O Profetismo no Israel Antigo
 
2.1. A terminologia do profetismo bíblico Segundo Sicre (2008,p.74), constitui-se em problema terminológico o fato de que a Bíblia utilize diferentes termos para referir-se ao que nós conhecemos por um único título – profeta. Os diferentes termos utilizados pela Bíblia Hebraica para referir-se a esse personagem que conhecemos como profeta estão reunidos em duas passagens bíblicas significativas: 1Sm.9.6-9; 1Cr.29.29. Contemplaremos como segue uma definição panorâmica dos diversos termos na ordem de seu aparecimento escriturístico, segundo Sicre (2008,ps.74-92).
 
2.1.1. Vidente ro’eh
 
O termo aparece 11 vezes na BH. Em quatro dessas aparições referindo-se a Samuel (1Sm.9.9,11,18,19), uma ao sacerdote Sadoque (2Sm.15.27) e também em Isaías 30.10, no plural – “videntes”. O episódio de Samuel define o termo: “um homem que conhece coisas ocultas, e que se pode consultar dando-lhe uma gorjeta.”3 Em Isaías, refere-se a um grupo que mediante suas visões e palavras recorda ao povo seu compromisso com Deus; não aparecem aqui como pessoas consultadas para resolver problemas pequenos, como o das jumentas de Saul, mas sobre questões de interesse nacional, confrontando seus concidadãos.
 
2.1.2. Visionário hozeh
 
O termo “visionário”, usado por Sicre para diferencia-lo de “vidente”, ocorre em 16 passagens escriturísticas. Em 2Sm.24.11, referindo-se a Gad, parece sugerir que a missão deste profeta era a de servir ao rei com suas visões; também o cronista usa o título “visionário do rei” aplicado a Emã (1Cr.25.5) e iditum (2Cr.35.15). Em Is.29.10, os visionários são mencionados em paralelismo com os profetas, como recursos do povo de Israel para orientar-se corretamente; deixa-los às cegas seria o maior castigo de Deus ao povo. A importante função religiosa dos visionários fica patente a partir de textos como 2Rs.17.13; e sua valentia e intrepidez em 2Cr.33.18, contra o ímpio Manassés.
 
2.1.3. Homem de Deus ish elohim Mais frequente que os termos anteriores, esse aparece 76 vezes, 55 só no livro dos Reis; na maioria das vezes refere-se a personagem conhecido, como Elias (29x), Elias (7x), Moisés (6x), Samuel (4x), Davi (3x), Semeías (2x),Ben-Joanã (1x); também aplicado a personagens anônimos (1Sm.2.27; 1Rs.13,17x; 1Rs.20.28;2Cr.25.7,9). Em época tardia, o título fora usado em sentido honorífico para designar Moisés (Dt.33.1;Js.14.6;Sl.90.1;Ed.3.2;1Cr.23.14;2Cr.30.16) e Davi (2Cr.8.14; Ne.12.24,36); nesse caso, o termo perde o interesse profético. Em síntese, a tradição bíblica traz que o homem de Deus possui uma relação estreita com o Senhor que pode operar os maiores milagres, não estando o tema da transmissão da palavra de Deus ausente; não se trata de uma palavra que anuncia o futuro ou exige uma mudança do presente, mas a palavra poderosa que multiplica o azeite da viúva, ressuscita mortos,etc.; Após o primeiro milagre de Elias, a viúva de Sarepta se dirige a ele como “homem de Deus”; e quando o mesmo profeta ressuscita seu filho, ela, mais convicta, declarara: “Agora reconheço que és um homem de Deus e que se cumpre a palavra do Senhor, que tu pronuncias!” (1Rs.17.24); Ao profeta Eliseu4 também se aplicou esse título com essa mesma acepção que une Palavra e Poder. Os profetas designados com o título homem de Deus se distinguem por não apenas denunciar o presente ou anunciar o futuro, mas também por sua capacidade de transformar miraculosamente a realidade em sua volta; são mensageiros divinamente autorizados e operadores de prodígios.
 
2.1.4. Profeta nabi’
 
Aparece 315 vezes na BH, sendo o termo clássico mais frequente usado para referir-se aos profetas; sua abundância de citações, no entanto, leva estudiosos como Sicre (2008,ps.81-90), depois de uma investigação de todas as suas ocorrências em todo Antigo Testamento, à várias conclusões sobre seu sentido, como segue. O título profeta não é de uso exclusivamente positivo, podendo ser aplicado até aos profetas de Baal, por exemplo, e/ou a quaisquer falsos profetas. Não obstante variem o sentido e a função do profeta ao longo da história, sua atividade predominante era a de comunicar a palavra de outra pessoa, a exemplo de Arão e Moisés, em Ex.7.1. O chamado profeta pode atuar sozinho e de forma independente ou em grupo, sendo esse último caso o mais antigo. Os profetas do Norte de Israel atuavam em torno do Rei, enquanto sua contraparte sulina profetizava em torno do Templo e junto aos sacerdotes, sendo por isso designados “profetas cultuais”. O profetismo bíblico não se mostra um fenômeno homogêneo5, podendo, segundo alguns estudiosos, ser classificado em grupos diferentes6. As mulheres podem fazer parte desse movimento - nebiah [profetisa;esposa de profeta]) - até com certo prestígio, uma vez que as mesmas não têm acesso ao sacerdócio7.
 
2.2. Os profetas como Pregadores Extraordinários
 
Os profetas do Israel antigo geralmente são vistos como homens que preveem o futuro8 imediato ou mesmo remoto de Israel e anunciam a vinda futura do messias e seu reino. Malgrado, os profetas bíblicos estavam mais interessados na situação do povo de Israel no momento em que viviam; falavam sobre o futuro relacionado com o presente e decorrente de acontecimentos contemporâneos a eles e a seus ouvintes; sua atenção e palavras, portanto, tinham como alvo a audiência que tinham diante de si e não pessoas de um futuro desconhecido pertencentes a outra economia de salvação9. Assim como os pregadores de nosso tempo, os profetas pregavam as verdades básicas de Deus ao povo; não eram como missionários aos infiéis, anunciando as verdades da salvação e a revelação a quem nunca as ouviu antes; também não eram pregadores dominicais que instruíam com o fim de levar o povo a uma vida fervorosa; para esses fins o povo tinha os sacerdotes, no Templo, e depois os rabinos, nas sinagogas. Antes, os profetas eram pregadores extraordinários levantados por Deus, esporadicamente, para pregar temas religiosos fundamentais e chamar de volta o povo a observância da Aliança em tempos de transgressão e crise religiosa.
 
2.3. O Problema do Pseudoprofetismo
 
No Antigo Testamento, podemos distinguir dois grupos pseudoproféticos: a) o dos profetas de divindades estrangeiras e/ou pagãos, como Baal; e b) o dos que alegam falar em no me de Yaweh. Os profetas de divindades estrangeiras carecem de importância, não obstante sua perniciosa influência eventual sobre o povo de Israel levando-os à idolatria (cf.1Rs.18). Já o segundo grupo, o dos pretensos profetas de Yaweh, é mais grave por sua falsa alegação de possuir uma revelação do Deus verdadeiro. Havia em Israel, assim, homens que pretendiam exercer a função profética sem terem sido de fato chamados por Deus para tanto (cf.Jr.23.21); e nem sempre era tarefa fácil distinguir entre profetas realmente chamados por Deus e seus pretensos porta-vozes10; nas palavras de Ellis (1995,p.251), “Então, como agora, não era tão fácil separar o falso do legítimo sobrenatural.”.
 
O verdadeiro profeta caracterizava-se, dentre outras coisas, segundo Ellis (1995,p.251), pela integridade, pela santidade de vida e pela coerência de sua pregação com o ensino de Moisés e, algumas vezes, pelo testemunho de milagres e o cumprimento de suas profecias durante sua vida. Monloubou (1986,p.77), ademais, aposta na homogeneidade ou continuidade como critério de verdade profética: “Homogeneidade – ou continuidade – na fé, na proclamação do único e verdadeiro Deus...Na história sobretudo;na concordância entre a Palavra e a realidade como o tempo a revela, aos poucos.”. Para Monloubou, a realidade profética se prende a uma verificação progressiva, no transcorrer do tempo, feita pela comunidade que no passar dos dias assim separa o falso do verdadeiro. Lacy (1998,p.270) nos apresenta um elenco de critérios veterotestamentários para distinguir o falso do verdadeiro profeta, como segue.
 
Critérios relacionados à Mensagem: a) o cumprimento ou não da profecia (cf.Dt.18.22;1Rs.22.28;Jr.28.9); b) a promessa de salvação ou o anúncio de juízo (Jr.28.8-9;Mq.3.5b); c) a forma da revelação:êxtase,sonho e espírito ou a não êxtase,não visão, não palavra (cf.Jr.23.25-28); d) Fidelidade ao Senhor ou apostasia dele (Dt.13.1-3;Jr.2.8,26,27).
 
Critérios relacionados ao profeta: a) institucionalização do ofício profético (cf.1Rs.22); b) conduta imoral (cf.Mq.3.11;Is.28.7;Jr.23.14;Mt.7.16); c) Convicção de ser enviados (Am.7.10-14;Mq.3.8)11. Martin-Achard (1992,p.30) apresenta sua síntese criteriológica e chega à mesma conclusão de Lacy – os critérios não são conclusivos12.
 
A dificuldade dos critérios, esboçada pelos citados estudiosos, aponta-nos para a complexidade que era distinguir entre o falso e o verdadeiro no oficio profético de falar em nome de Yaweh, no Israel antigo; contudo, o triunfo da Palavra de Yaweh anunciada aos e pelos profetas através dos séculos que se seguiram, bem como a conversão e comprometimento de um remanescente sempre fiel e obediente à revelação dada, dão prova de que, de alguma forma, tais critérios alcançaram seu objetivo geral de preservar a verdade e a Palavra do Deus de Israel.

Notas

1 Bibliografia especializada: ASURMENDI,Jesus.O Profetismo:das origens à época moderna.São Paulo: Edições Paulinas,1988;ELLIS,Peter F.Os Homens e a Mensagem do Antigo Testamento.São Paulo: Editora Santuário,1995;GONZÁLEZ BLANCO,Rafael.Los Profetas,traductores de Dios.Salamanca:Editorial San Esteban,2004; LACY,J.M.Abrego de.Os Livros Proféticos.São Paulo:Ave Maria,1998;MARTIN-ACHARD,Robert IN: AMSLER,S.;ASURMENDI,J.;AUNEAU,J.;MARTIN-ACHARD,R.Os Profetas MONLOUBOU,Louis.Os Profetas do Antigo Testamento.São Paulo:Paulinas,1986;SCHÖKEL,L.A.;SICRE DIAZ,J.L.Profetas I:Isaías,Jeremias.São Paulo:Paulinas,1988. SICRE, José Luíz.Profetismo em Israel:o profeta,os profetas,a mensagem. Rio de Janeiro:Editora Vozes,2008; KIRST,Nelson; KILPE,Nelson; SCHWANTES,Milton; RAYMANN,Acir; ZIMMER, Rudi.Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português.7ª.ed.São Paulo: Sinodal/ Vozes, 1996.
2 Peter Ellis observa,ibidem,pg.250,que Ex.7.1 apresenta-nos uma definição simples do que seria um profeta no mundo antigo: um homem que fala em nome de Deus, que é seu porta-voz, a exemplo de Moisés,Samuel, Natã,Amós e Oséias.
3
SICRE,ibidem,pg.75-76.
4 Outras tradições, como a de Is.38.1-8, falam do profeta como operador de milagres também.
5 Sicre,ibidem,p.90, diz que o profetismo bíblico não era homogêneo nem no que diz respeito à mensagem, nem às suas manifestações; talvez isso seja verdadeiro apenas no que se refere à sua manifestação, pois percebe-se um padrão e/ou unidade na teologia e mensagem geral de todos os profetas bíblicos. Cf.GRONINGEN,Gerard Van.Revelação Messiânica no Antigo Testamento.São Paulo:Cultura Cristã;GRONINGEN,Gerard Van.Criação e Consumação.São Paulo;Cultura Cristã; GRONINGEN,Gerard Van.O Progresso da Revelação no Antigo Testamento.São Paulo:Cultura Cristã,2006;KAYSER Jr.,Walter.Teologia do Antigo Testamento.São Paulo:Vida Nova,1984.
6D.E.Aune, citado por Sicre,ibidem,p.90,nota 106,classifica os profetas do AT em 1) profetas xamãs (Samuel,Elias,Eliseu); 2) profetas cultuais e do templo; 3) profetas da corte; 4) profetas por livre opção. Eichrodt,também citado por Sicre, faz distinção entre os videntes, o nebiismo e a profecia clássica.
7 PETER ELLIS,ibidem,p.251,observa que “(...) o chamamento divino para a função profética não se restringia a um determinado tipo ou grupo de pessoas. Eliseu era fazendeiro;Amós,pastor;Isaías,da classe alta;Jeremias e Ezequiel, sacerdotes. Também mulheres foram reconhecidas como profetisas. É o caso, por exemplo, de Maria,Débora e Holda.”
8De acordo com o especialista em profetismo José Luíz Sicre,ibidem,pg.74,nota 20, foi o termo grego profh/thj , que referia-se a um intérprete e/ou comunicador da mensagem da divindade aos homens, relacionado geralmente a algo futurístico, que nos trouxe o conceito do profeta como “aquele que prediz” ou que “fala do futuro”.
9 PETER ELLIS,ibidem,pg.249.
10 Martin-Achard,ibidem,p.30,define o problema do falso profeta em termos de “examinar a autenticidade do chamado do profeta e a legitimidade de sua missão".
11LACY,ibidem,p.270-271,entende que nenhum desses critérios, malgrado, se aplica sempre para distinguir com êxito a questão; cita por exemplo, o caso de profetas verdadeiros que somente a posteriori foram reconhecidos como tais, sendo antes do cumprimento de seus vaticínios vistos como falsos profetas – trata-se do problema do critério de cumprimento não ser, portanto, conclusivo, segundo ele. Para Lacy, portanto, “poderíamos continuar percorrendo todos os critérios, sem poder encontrar sequer um seguro”.
12 Foram propostos vários [critérios]:realização da profecia,atitude moral do porta-voz de Iaweh, sua posição perante as autoridades, a tradição, o povo etc.;nenhum deles foi decisivo e suficiente. (...) não é possível reconhecer a priori qual é o verdadeiro e qual o falso profeta, nem distinguir, sem risco de engano, a real testemunha de Iaweh da de seu falsário.”













sexta-feira, 19 de abril de 2013


Introdução à Crítica Textual do Novo Testamento

D.F.Izidro


Dedico este pequeno texto de introdução à Crítica Textual, ao meu aluno sofisticadamente curioso e impressionantemente inteligente Rafael Nunes do Seminário Arquidiocesano Redemptoris Mater, o qual me inspirou a postar essa composição elementar sobre o assunto.


1. Definição

1.1. Primeira Definição

A Crítica Textual é a ciência que procura restabelecer o texto original de um trabalho escrito cujo autógrafo1 não mais exista. Nos meios seculares, também é conhecida como ecdótica2 e não está relacionada, em sua aplicação, apenas ao Novo Testamento, sendo extensível a qualquer peça literária cujo texto original tenha sido eventualmente alterado no processo de cópia e recópia, sobretudo antes da invenção da imprensa no século XV.

1.2. Segunda Definição

A Crítica Textual pode se definir através de seu principal objetivo – reconstruir o texto original. De fato, o objetivo da Crítica Textual é a reconstrução do texto, exatamente como ele era no tempo em que os livros bíblicos adquiriram sua forma literária final, antes de serem introduzidos no cânon. A Crítica Textual é necessária se quisermos chegar com segurança ao texto original. Portanto, qualquer explicação científica do texto deve começar com o cuidado em determinar o texto autógrafo ou original.

1.3. Terceira Definição

Definimos a Crítica Textual pela seguinte descrição de sua Tarefa:
  1. Constatar as diferenças entre os diversos manuscritos que contêm cópias do texto da exegese;
  2. Avaliar qual das variantes poderia corresponder com maior probabilidade ao texto originalmente escrito pelo autor bíblico.

2. Contribuições da Crítica Textual

Dela dependem todas as demais ciências bíblicas que corporalizam a religião cristã, pois lança os fundamentos sobre os quais toda e qualquer investigação bíblica deva ser construída. Sem um texto grego fidedigno, tão mais próximo do original quanto possível, não há como se fazer confiável crítica histórica ou literária, exegese, teologia, nem mesmo sermão, para não falar em tradução. Consiste num pré-requisito para todos os outros trabalhos bíblicos e teológicos, sustenta J. Harold Greenlee.
Além de nos fornecer uma reconstrução do texto bíblico original, sem o qual não podemos realizar nenhum tipo de trabalho bíblico, ou mesmo fundamentar nossa fé, a Crítica Textual também nos ajuda na investigação e estudo das comunidades cristãs primitivas no que diz respeito à sua fé, teologias, controvérsias e o modo como lidou com o texto bíblico, através do estudo das correções textuais feitas pelos copistas e da história de transmissão do texto em suas mais diversificadas regiões geográficas, tais como Alexandria, Roma, Antioquia, Cesareia, etc. A Crítica Textual, portanto, pode mostrar em vários versículos isolados, o início do processo de interpretação destes textos, exatamente pelas alterações que os copistas introduziram durante a cópia dos manuscritos.
  1. O Procedimento de Crítica Textual

Quanto ao material com que trabalham os críticos textuais, este inclui, no caso específico do NT, não somente as cópias manuscritas dos livros apostólicos na língua original, o grego, mas também antigas versões, bem como citações de passagens bíblicas de antigos escritores. A prática da Crítica Textual, portanto, exige um conhecimento especializado dos diferentes manuscritos e das respectivas famílias textuais, conhecimento da paleografia grega e do cânon crítico3, além do vocabulário e da teologia do autor cujo livro se examina.
Para o desempenho de tal labor crítico-exegético, o exegeta deve fazer uso das edições críticas do Antigo e Novo Testamentos nas línguas originais. Estas edições críticas do Antigo e Novo Testamento indicam, mediante um aparato de notas de rodapé, as principais leituras variantes para um mesmo texto bíblico que aparecem nos diferentes manuscritos.
As edições críticas geralmente utilizadas são:

Para o Antigo Testamento:

  • Texto Massorético (TM) – ELLIGER,K.;RUDOLF,W.Bíblia Hebraica Stuttgartensia;

Para o Novo Testamento:

  • Nestlé,E.& Aland,K.Novum Testamentum Graece;
  • UNITED BIBLE SOCIETIES, The Greek New Testament.
  • Editio Critica Maior4

    1. Critérios à Crítica Textual

A fim de reconstruirmos a leitura original do texto bíblico, precisamos partir de uma análise que leve em consideração aspectos Externos e Internos. A crítica Externa toma em consideração o aspecto físico dos manuscritos: quantidade, qualidade, datação. Por sua vez, a crítica Interna analisa o texto propriamente dito: articulação das idéias, uso das palavras, estilo, teologia. Cada uma dessas críticas, portanto, possui seus próprios requisitos.

  • São critérios da Crítica Externa:

  1. Múltipla Atestação (quantidade de testemunhos manuscritos)
  2. Antiguidade dos Mss. (datação)
  3. Qualidade e Confiabilidade (tipo textual do Ms.)

  • São critérios da Crítica Interna:

  1. A leitura mais difícil é preferível à mais fácil
  2. A leitura mais breve é preferível à mais longa
  3. Estilo e teologia do autor
Algumas questões metodológicas também podem ser feitas com o intuito de analisar a leitura variante em questão:

    1. Qual leitura faz mais sentido?
    2. Qual é apoiada pelos manuscritos mais antigos?
    3. Qual é encontrada em manuscritos no maior número de áreas geográficas?
    4. Qual foi mais usada pelos tradutores antigos?
    5. Qual é mais citada pelos pais da igreja?
    6. Qual leitura se harmoniza melhor com o estilo e teologia do autor?
    7. Qual leitura explica melhor a origem das demais?



  1. Exercício de Crítica Textual

Crítica Textual de Atos dos Apóstolos 10.19
(Preliminar)
D.F.Izidro

1ª LEITURA VARIANTE – () 

  1. Evidência Externa

    1. Papirus: p74
    2. Unciais: A C E
    3. Minúsculos: 33 36 81 181 307 453 610 945 1175 1409 1678 1739 1891 2344
    4. Lecionários: l1178
    5. Versões: itar,c,dem,e,gig,p2,ph,ro,w vg syrp,hmg copsa,bo,meg eth geo
    6. Pais: Didymusdub; Virgilius

  • Nota: Esta leitura possui uma boa e ampla atestação manuscrita na tradição textual do NT, nos seis tipos de fontes manuscritas do mesmo. Os papiros, unciais (exceção do E) e alguns minúsculos pertencem ao tipo de texto Alexandrino – considerado o melhor tipo textual do NT. As versões e citações patrísticas são do IV e V séculos d.C. Os unciais também são desta data. O único papiro que atesta esta leitura é do sétimo século.
  • Do ponto de vista da evidência meramente externa ou manuscrita, esta leitura seria muito provavelmente a leitura original do texto.5


  1. Evidência Interna

    1. Esta leitura se “harmoniza” com dados do próprio livro (cf.At.11.11;10.7).
    2. O uso do binômio substantivo-numeral e numeral-substantivo é comum no livro de Atos (e em Lucas).
    3. Na redação de Atos é comum o relato do autor se conformar com o relato de personagens sobre o mesmo evento (cf.At.9,22,26, sobre o relato da conversão de Paulo); de modo que o dado de 11.11 deve confirmar assim a leitura de 10.19.
    4. Não obstante, esta leitura () não é idêntica ao texto de 11.11 ().
    5. Deve-se acrescentar ainda que esta leitura () não explica as demais variantes, isto é, o que levara um copista a, mesmo diante de 11.11 e 10.7, mudar o texto para outra forma (como “dois homens” ou “alguns homens”).
    6. Além do mais, esta leitura variante () pode ser resultado de uma “harmonização” do copista diante das informações de 11.11 e 10.7. Expediente muito comum entre os copistas.

  1. Conclusão

  • Os problemas levantados pela evidência interna põem em dúvida a originalidade desta leitura, mesmo diante de tão boa atestação manuscrita.


2ª LEITURA VARIANTE - () 

  1. Evidência Externa

    1. Unciais: B

  • Nota: Esta leitura é atestada por um único manuscrito antigo, o Códex Vaticanus. Embora seja o único testemunho em favor desta leitura, este data do IV século E.C. e pertence a um dos melhores tipos de texto, o texto Alexandrino, o qual remonta ao fim do século I e começo do II E.C.

  1. Evidência Interna

    1. O uso do binômio substantivo-numeral e numeral-substantivo é comum no livro de Atos (e em Lucas).
    2. Esta leitura é de fato a mais difícil de todas e, desta forma, explica a primeira variante textual () como sendo uma correção do copista em relação à mesma.
    3. Contudo, esta leitura ( ) não condiz com a conformidade típica dos relatos do autor com a versão de seus personagens sobre um mesmo evento. Sem falar que pode ser até uma contradição contextual em relação à 11.11.
    4. Esta leitura também não explica a variante que omite o numeral, isto é, “alguns homens” (). Porque mudaria o copista de “dois homens” para “alguns homens”, mesmo diante da informação de 11.11?

  1. Conclusão

  • A evidência externa pequena, não obstante significativa, desta leitura e os problemas de evidência interna levantados nos levam a concluir pela provável não originalidade desta lição textual.


3ª VARIANTE TEXTUAL – ()omissão

  1. Evidência Externa

    1. Unciais: D Y
    2. Minúsculos: 614
    3. Bizantinos: Byz [L P]
    4. Lecionários: l597
    5. Versões: itd,l,p* syrh slav
    6. Pais: Apostolic Constitutions Chrysostom; Ambrose Augustine Speculum Cassiodorus

  • Nota: Embora não sejam tão antigos (V e IX/X), estes unciais pertencem ao tipo de texto Ocidental e Alexandrino, respectivamente. O minúsculo é bastante recente (XIII). Os dois bizantinos são ambos do IX século. O lecionário data do século X e as versões entre o V e IX séculos. As citações patrísticas são do IV século.

  1. Evidência Interna

    1. O autor também tem por expediente estilístico o uso de substantivos anartros e sem adjetivos ou pronomes indefinidos para dar acepção indefinida, isto é, como em “alguns homens”.
    2. Esta leitura explicaria as outras duas leituras como uma glossa que se tornou depois parte do texto – equívoco comum entre os copistas. A primeira glossa pode ter se originado do dado de 11.11, e a segunda de uma provável interpretação de 10.7. Ambas devem ter sido independentemente glossadas à margem do texto como uma nota explicativa, mas que posteriormente deve ter sido entendida como uma correção.
    3. Esta leitura não contradiz nem o estilo típico do autor, nem as informações contextuais do contexto (11.11;10.7).
    4. Estudos de interpolação e variantes textuais em manuscritos antigos mostram que a tendência dos copistas era mais para a ampliação dos textos do que para a supressão de partes deles. Os copistas acrescentam mais do que suprimem.

  1. Conclusão

  • Diante destes fatos, não obstante o significativo peso da evidência Externa em relação à primeira leitura, mas dando maior atenção a outros aspectos também relevantes do texto (especialmente funcionais e sincrônicos), a leitura mais provável deve ser essa última, pois se harmoniza melhor com o estilo do autor, a literatura como um todo e ao que era típico nos expedientes revisionistas dos primeiros copistas.



BIBLIOGRAFIA

PAROSCH,Wilson. Crítica textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1993.
Schnelle,Udo. Introdução à Exegese do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 2004.
Silva,Cássio Murilo Dias da. Metodologia de Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas,1998.
WEGNER,Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia.São Paulo: Sinodal/Paulus,2002.
WOLFF, H.W. Bíblia Antigo Testamento – Introdução aos Escritos e aos Métodos de Estudo. São Paulo: Paulinas,1978.


1 Autógrafo: termo técnico que designa o manuscrito original de uma obra.

2 Ecdótica: termo introduzido na ciência literária por D.Henri Quentin, em sua obra Essais de Critique Textuelle: Ecdotique, publicada em Paris em 1926.

3 Cânon crítico: certos critérios científicos estabelecidos pelos críticos textuais para propiciar uma escolha inteligente entre dois ou mais textos divergentes.

4 Desde 1997 está sendo publicada a Editio Critica Maior do Novo Testamento grego (ed. por B.Aland, K.Aland , G.Mink, K.Wachtel). Este novo texto tem por objetivo oferecer todo o material da história textual de um escrito do Novo Testamento. O seu primeiro exemplar abrange o texto de Tiago.

5 Não obstante, tal atestação pode estar equivocada, pois alguns textos antigos já apresentaram bastante corrupção.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Teologia do Novo Testamento: Definição e Problema

D.F.Izidro


1. Definição de Teologia do Novo Testamento
 
          Segundo George Eldon Ladd,

“ A teologia bíblica é a disciplina que estrutura a mensagem dos livros da Bíblia em seu ambiente formativo histórico. A teologia bíblica é basicamente uma disciplina descritiva, cuja abrangência não busca primeiramente o significado final dos ensinos da Bíblia, ou sua relevância para os dias atuais, uma tarefa da teologia sistemática. A tarefa da teologia bíblica é expor a teologia encontrada na Bíblia em seu contexto histórico, com seus principais termos, categorias e formas de pensamento.”[1]
          A Teologia do Novo Testamento, portanto, faz parte da grande área da Teologia Bíblica. Trata-se da descrição exegético-histórica do conteúdo teológico dos escritos neotestamentários cada qual em sua própria particularidade e com suas próprias categorias e definições.
          A Teologia do Novo Testamento, pois, é uma disciplina de natureza histórica e exegética, embora não possa abstrair da teologia.

2.      O Problema da Teologia do Novo Testamento

          Para alguns estudiosos contemporâneos, a Teologia do Novo Testamento está em crise, pois não há entre as obras dos pesquisadores mais recentes concordância quanto a natureza, método e objetivo da teologia do NT. Norman Perrin fala de “confusão” no estudo da teologia neotestamentária;[2] há consenso entre os pesquisadores de que a teologia do NT é um ponto crucial no debate teológico atual.
          Muitos dos problemas básicos estão relacionados, por exemplo, ao lugar de Jesus na teologia do NT. Se por um lado, Rudolf Bultmann entende que “a mensagem de Jesus é mais uma pressuposição para a teologia do NT do que uma parte da teologia em si”[3], por outro lado Joachim Jeremias trata da mensagem de Jesus em todo seu primeiro volume da Teologia do Novo Testamento.[4] Para o estudioso britânico S. Neill, “Toda teologia do Novo Testamento tem que ser uma teologia de Jesus ou não é absolutamente nada”.[5] As divergências escondem problemas de natureza histórica, teológica, filosófica e metodológica nas abordagens à teologia do NT apresentada por muitos estudiosos.
          Não obstante, de forma mais geral, as controvérsias acadêmicas em torno da teologia do NT dizem respeito aos seguintes itens: (1) Metodologia; (2) A questão do Centro Unificador do NT/ Unidade e Diversidade no NT; e (3) O relacionamento entre AT e NT.
          Segundo estudiosos como Werner Georg Kümmel[6], a pergunta pela teologia do NT confronta-nos com a questão da unidade do NT diante da pluralidade de vozes teológicas que há nele. A diversidade do Novo Testamento fora sentida desde a Reforma, pelo próprio Lutero quando da tradução do Novo Testamento em Wartburg (1521/1522), o qual expressou tal descoberta no prefácio de sua tradução em 1522.
          Mas essa pluralidade no testemunho da fé neotestamentária foi ignorada na Igreja Protestante devido o conceito de Autoridade das Sagradas Escrituras. Foi com o advento do Iluminismo no século XVIII, que o conteúdo teológico do NT foi exposto como uma grandeza histórica autônoma, respeitando-se a peculiaridade histórica e doutrinária de cada um de seus escritos separadamente. A Bíblia, então, passou a ser estudada livre dos laços dogmáticos da Igreja e com o auxílio dos métodos da ciência histórica. Logo que a peculiaridade e diversidade do conteúdo teológico da Bíblia foi descoberta, a exposição do AT e NT foi totalmente diferenciada. As diferenças dentro de cada Testamento foram aventadas bem como as possibilidades de seu eventual desenvolvimento.
          Desde o início, portanto, o estudo da pesquisa do NT se viu diante do problema da unidade e diversidade de seus testemunhos. Além disso, a impossibilidade de uma Unidade no NT tornou também impossível a existência de uma Teologia Sistemática com base nele.
          O que Lutero havia observado em alguns exemplos isolados, a pesquisa científica histórica evidenciou no século XIX: Há no NT uma pluralidade de vozes que por vezes parecem se contradizer e/ou se manifestam de modos tão diferentes que não podem passar ao largo de um exame crítico e criterioso.
          A difícil tarefa da teologia do NT, portanto, consiste em permitir que cada escrito, ou grupo de escritos, manifeste seu testemunho, para que depois disso, então, possamos perguntar pelo que há em comum entre esses testemunhos, bem como constatar as diferenças que não podem ser superadas.
          Esse estudo, porém, é bastante dificultado pela discordância que há entre os estudiosos quanto a determinação exata das condições históricas em que surgiram esses escritos.
          O resultado dessas dificuldades consiste nas várias e diversificadas abordagens metodológicas e pressuposições sobre a natureza e significado da Teologia do NT.




[1]    LADD,G.E.Teologia do NT,pg.38.
[2]    N.PERRIN,Jesus and the Theology of the New Testament,Catholical Biblical Association,Colo.,18 a 21 de agosto,1975.
[3]    R.BULTMANN,Theology of the New Testament,Londres,1965,I,p.3.
[4]    J.JEREMIAS,NT Theology:The Proclamation of Jesus (1971).
[5]    NEILL,Jesus Through Many Eyes,p.10.
[6]    KUMMEL,W.G.Síntese Teológica do Novo Testamento,pgs.29ss.

segunda-feira, 25 de março de 2013

TRADIÇÃO EVANGÉLICA SINÓPTICA

OS EVANGELHOS SINÓPTICOS:
HISTÓRIA E LITERATURA

Prof.Denes Izidro © 2009[1]


Bitencourtt,B.A Forma dos Evangelhos e a Problemática dos Sinópticos.São Paulo: Imprensa Metodista;Black,Aland David.Porque 4 Evangelhos?.São Paulo: Editora Vida, 2004;Bruggen,Jakob Van.Cristo na TerraOs Evangelhos como História.São Paulo : Cultura Cristã;Carson,D.A;Moo,Douglas J.&Morris, Leon. Introdução ao Novo Testamento.São Paulo:Vida Nova,1997; Dattler, Frederico. Sinopse dos Quatro Evangelhos.São Paulo:Paulus, 1998; FABRIS,Rinaldo.Os Evangelhos.São Paulo: Loyola, 1990.vls.I,II;Konings,Johan.Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e  Lucas e a Fonte Q.São Paulo:Loyola,2005; Marconcini, Benito.Evangelhos Sinóticos – Formação, Redação e Teologia.São Paulo:Paulinas,1998; Miranda, Osmundo.Estudos Introdutórios nos Evangelhos Sinóticos.São Paulo:Cultura Cristã (CEP),1989; MONASTÉRIO,Rafael Aguirre; CARMONA,Antonio Rodrigues Carmona. Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos.São Paulo:Ave Maria,2000.vl.6[2];Moracho,Felix.Como Ler os Evangelhos.São Paulo: Paulus,1997; Wegner, Uwe.Exegese do Novo Testamento. São Paulo:Sinodal/Paulus,1998.

1.INTRODUÇÃO AO ESTUDO CRÍTICO DOS EVANGELHOS SINÓPTICOS

          1.1.Panorama Histórico

l        Os Evangelhos canônicos foram estudados sempre com muita freqüência ao longo da história da Igreja,contudo a abordagem propriamente científica a eles só se deu a partir do século XIX,quando são lidos sob perspectivas crítico-históricas.
l        Os próprios “críticos” dos evangelhos canônicos abordaram os mesmos também de forma pré-científica e dogmática (ex.Celso,II d.C.).
l        Mas com o surgimento do Iluminismo no século XVIII,a razão também foi metodologicamente aplicada à teologia e aos estudos bíblicos,inclusive os Evangelhos.
l        Inaugurando essa perspectiva crítico-histórica H.S.Reimarus (1772,cuja obra De las pretensiones de Jesús y de sus discípulos foi publicada dez anos depois de sua morte por G.E.Lessing) defendeu a tese de que Jesus pretendia ser um messias político e assim libertar o povo judeu do jugo romano,mas fracassou sendo executado pelas autoridades.Seus discípulos,no entanto,roubaram seu cadáver e para ocultar tal fracasso deturparam nos Evangelhos o real propósito e natureza de Jesus de Nazaré,de modo que a imagem de Jesus nos Evangelhos é mera criação de seus discípulos.
l        G.Paulus (1761-1851),malgrado descordasse da posição de Reimarus,empenha-se em explicar racionalmente,e com admirável simplismo,a narrativa evangélica:ele explica,por exemplo,a ressurreição de Jesus sob a alegação de que ele não estava morto,mas apenas havia desmaiado e fora reanimado pelo frio da pedra.Os eventos sobrenaturais narrados nos evangelhos teriam sido tão somente eventos naturais mal compreendidos.
l        D.F.Strauss,autor de uma Vida de Jesus (1835),sustentava que não seria necessário recorrer ao sobrenatural para explicar a vida de Jesus como fazem os dogmáticos,nem à teoria da fraude como fez Reimarus,e nem mesmo à explicações naturalistas como as de Paulus,mas tão somente à uma interpretação mítico-simbólica da vida de Jesus:Para Strauss os evangelhos não são história de Jesus,mas uma interpretação mítica de sua pessoa feita pelos cristãos;ele entendia,não obstante, que sob essa roupagem mítico-simbólica haviam verdades perenes para o homem.
l        Os trabalhos críticos na modernidade começam com C.H.Weise (1801-1866) e C.G.Wilke que chegaram de modo independente em 1838 ao mesmo resultado: na base da tradição evangélica há dois documentos,Marcos e Q .Daí se origina a teoria das duas fontes.H.J. Holtzmann, posteriormente, sustentou contra a escola de Tubingen (F.C.Baur) que Marcos não era uma síntese de Mateus e Lucas,mas o evangelho mais antigo e de maior valor histórico.A parti daí proliferam os estudos sobre Marcos e a fonte Q e as Vidas de Jesus,fundamentadas sobre a suposta confiabilidade histórica de Marcos.Nesse período,estudiosos mais críticos buscam pelas fontes utilizadas por esse evangelho (J.Weiss;J.Welhausen).
l        Contudo,a valorização histórica de Marcos muda radicalmente com a obra de W.Wrede (1901),que defende a tese de que Marcos é um relato elaborado por motivação teológica e não uma narração histórica próxima da realidade.O segredo que Jesus impõe com freqüência em Marcos - “Segredo Messiânico”- não corresponde à realidade da vida de Jesus,mas fora criado por Marcos para explicar o abismo entre a vida histórica de Jesus,que jamais fora messiânica,e o culto posterior que o proclama como tal.Para Wrede,Marcos construiu uma obra teológica,não histórica.Ele declara:
Considerado em seu conjunto,o Evangelho de Marcos não oferece uma imagem histórica da vida real de Jesus.Somente alguns vestígios escassos de tal imagem se têm conservado em sua narração,que reflete uma concepção supra-histórica,teológica de Jesus.Nesse sentido,o Evangelho de Marcos pertence à história dos dogmas.[3]
l        A Escola Liberal dá pouca confiança ao Evangelho de Marcos e prefere fundamentar-se na fonte Q.A Escola escatológica fundamenta-se tanto em Marcos como na fonte Q,mas adota uma posição diferente:segunda ela,a essência do cristianismo não é uma moral,mas uma grande esperança,pois Jesus considerava iminente a irrupção da plenitude definitiva do reino de Deus (A.Schweitzer;A.Loisy).Loisy separa o Jesus da história do Cristo da fé – a igreja é um obstáculo que impede-nos chegar de fato a Jesus.
l        Não obstante todos esses excessos “críticos” no estudo dos Evangelhos,houve quem soube dar o devido valor aos métodos crítico-históricos e considerar a necessidade de uma utilização mais isenta dos mesmos,e mesmo assim sob perspectiva cristã. O pioneiro desta empreitada quiçá tenha sido o Pe.Lagrange (1855-1938),fundador da Escola Bíblica de Jerusalém,mas não sem dificuldades e incompreensões.[4]Estudiosos conservadores,tanto católicos quanto protestantes,estão cada vez mais receptivos à pesquisa científico-histórica das Escrituras.
l        Descobriu-se que a ferramente crítico-histórica fora mal aplicada e mal definida.Para muitos “crítica” significava desprezo,condenação,desqualificação histórica dos Evangelhos.Mas a correta acepção do termo “crítica” relacionada à pesquisa histórica da Escritura é definida como segue pelos seguintes estudiosos crítico-históricos:

Esse método (...) chama-se ‘crítico’ não por criticar a Bíblia ou procurar descobrir erros em seu texto, mas porque usa critérios científicos para julgar o texto o mais objetivamente possível, no que diz respeito aos aspectos históricos e literários, empregando todos os estilos de crítica literária (de textual a redacional), e para comentá-lo como expressão do discernimento humano.”
 Joseph A. Fitzmyer[5]

“(o trabalho de Crítica consiste em) fazer julgamentos inteligentes sobre questões históricas, literárias, textuais e filológicas que devem ser enfrentadas ao cuidar da Bíblia, à luz de todas as evidências disponíveis, em que se reconhece que a Palavra de Deus transmitiu-se aos homens pelas palavras de homens em determinadas situações históricas”

George Eldon Ladd[6]


l        A crítica histórica se bem aplicada traz à luz o ensinamento mais profundo e genuíno dos Evangelhos,recolocando o leitor moderno no contexto e ambiente histórico-social do escritor,além de reconhecer o valor e importância histórica dos Evangelhos na pesquisa de Jesus e do cristianismo primitivo.Tal método deixou claro que os Evangelhos devem ser estudados não só em perspectiva literária,mas criticamente histórica,desvenda-lhes as origens e formação.

1.2.Metodologia Histórico-Crítica dos Evangelhos

l        Distribuídos a seguir estão os passos da Exegese do método histórico-crítico tradicionalmente usados no estudo científico dos Evangelhos sinópticos.[7]
l        Crítica Literária: embarca um sentido mais restrito que o usado na teoria literária: a busca das fontes escritas e/ou orais por detrás dos Evangelhos (e/ou outros escritos antigos).O método pressupõe,evidentemente,o largo e complexo uso de fontes pelos evangelistas (e demais autores neotestamentários);a comparação sinóptica é uma das ferramentas mais importantes desse método para a determinação e explicação do uso de fontes.A hipótese das 2 fontes (Marcos e Q) são produto dessa investigação.
l        Crítica da Forma (Formgeschichte): estuda as tradições evangélicas em seu período pré-literário,isto é,antes de serem inseridas na redação evangélica.Trata,então,da pré-história oral das perícopes evangélicas a partir de sua forma literária.Também conhecida como “morfogenética”- estudo e evolução das formas literárias.Identificar a forma,desvendar sua origem e função original é tarefa desse estudo. Os pioneiros da formulação e uso desse método aplicado aos Evangelhos são K.L.Schmidt,R.Bultmann e M.Dibelius.
l        Crítica da Redação (Redaktionsgeschichte): o estudo do trabalho redacional dos evangelistas – especiaficações técnico-metodológicas sobre como os evangelistas manipularam suas fontes,configurando-as de acordo com seus interesses teológicos.Também conhecida como “História da Redação”,e mais recentemente como “análise da composição” dos Evangelhos.Uma reação retificadora do método anterior – a Formgeschichte:Os evangelistas ao invés de meros compiladores,são verdadeiros teólogos e escritores.
l        Crítica Histórica: estudo sobre a historicidade dos Evangelhos a partir de “critérios de historicidade” bem definidos pelos pesquisadores.Dentre eles: “o critério da múltipla atestação”, “o critério do constrangimento”, “o critério da descontinuidade”,etc.

1.3.Novas Metodologias no Estudo Crítico dos Evangelhos

l        Segue-se uma síntese dos métodos de estudo dos sinópticos surgidos nos últimos anos relacionados aos avanços sobretudo da lingüística e de outras ciências.
l        Crítica da Narrativa: muito comum nos meios anglo-saxônicos,este método aplica aos evangelhos as mais atuais teorias lingüísticas de análise de narrativas.Estuda cada obra evangélica no seu estado atual,mas partindo de seu caráter narrativo que gira em torno de uma trama e vários personagens. Parte,então,da situação atual do texto no qual todos os elementos contribuem para uma unidade de sentido.
l        Crítica do Leitor-Resposta: complementando o estudo da narratividade,esse método considera a participação do leitor na construção do sentido do texto.Estuda-se as estratégias presentes numa narração para provocar determinadas  respostas do leitor.Consideram o texto como elemento de comunicação que afeta as expectativas dos leitores.Existe sempre um “leitor implicado” no relato ao qual a narração tem presente e a quem,de vez em quando,dirige-se expressamente (Mc.7.3;13.14),o qual sabe de antemão de algumas coisas (Mc.1.1,11) e em quem se deseja provocar uma determinada resposta.Para esse tipo de abordagem aos evangelhos é preciso considerar os mesmos como unidades narrativas e usar metodologias afins.
l        Análise Estrutural: esse método fora usado de maneira diversa nos estudos bíblicos.Antes de tudo,o estruturalismo foi usado do ponto de vista exclusivamente sincrônico,mas não diacrônico na exegese: a leitura se fixa no estado atual do texto bíblico,sem se interessar por sua gênese histórica.É uma consideração meramente formal do texto não se preocupando nem com sua dimensão referencial histórica,nem com “extrair” idéias teológicas,nem com a seqüência temporal da narratividade.Esforça-se para descobrir as relações profundas,subjacentes ao texto em um sistema estruturado:trata sempre das relações de pares opostos e correlativos (ordem-caos;pequeno-grande;alto-baixo),pois todo elemento se identifica pela oposição aos outros e por sua diferença.O método se mostra útil,enquanto não desclassifica os demais na pretensão de exclusividade.
l        Método Sociológico: de modo geral,pretende relacionar as expressões literárias e teológicas com a estrutura social e/ou sócioliterária.Estes estudos podem ser feitos investigando-se os fatores sociais que condicionaram um texto e/ou as funções sociais que este texto exerceu sobre a sociedade;pode-se também estudar o “mundo social” que um determinado texto reflete.O método sociológico pode ser considerado um desenvolvimento do método histórico-crítico,de modo que o conceito de Sitz im Leben como situação típica e recorrente é definido como um conceito sociológico.Não obstante o material paulino seja mais favorável à aplicação deste método,devido proporcionaram mais dados sociológicos,o mesmo também tem sido usado no estudo dos Evangelhos,desde estudos sobre os fatores sóciohistóricos das tradições sinópticas até caracterização sociológica de comunidades destinatárias dos Evangelhos.

1.4.Questões Abertas - O Problema do Gênero Literário dos Evangelhos

l        Diferentemente dos outros escritos neotestamentários,a definição do gênero literário dos Evangelhos é assunto bastante controvertido,mas não menos importante.Pois a idéia que se tem sobre o gênero literário de um texto condiciona decisivamente sua interpretação.Mais ainda,o gênero dos Evangelhos tem algo a ver com o cristianismo primitivo e a cultura de seu tempo.
l        No estudo dos Evangelhos,dois modelos são apresentados como possíveis formas de enquadrar esses escritos quanto ao gênero literário deles: Modelo Evolucionista e Gênero Literário “sui generis” e Modelo Analógico e Gênero Literário homologável em seus tempo.

1.4.1.Modelo Evolucionista e Gênero Literário “sui generis”

l        A opinião de que os evangelhos são um gênero literário único e de criação cristã é muito desenvolvida na atualidade.
l        H.Koester mantém essa posição:para ele os evangelhos são o desenvolvimento do que Paulo denominou o “Evangelho”,o kerigma da morte e ressurreição de Jesus (1Co.15.1ss.);são os evangelhos,portanto,produto de uma determinada tradição cristã primitiva originada no seio da Igreja.
l        B.Gerhardsson também entende que os evangelhos são um gênero literário sem paralelos e de criação exclusivamente cristã.Sublinha a continuidade entre a tradição oral e as obras escritas a ponto de deixar pouco espaço para os trabalho dos evangelistas.Gerhardsson compartilha com Koester a idéia de que os evangelhos são produto da evolução da tradição e que não têm paralelos literários contemporâneos,mas discorda deste por acreditar que essa tradição remonta a Jesus,diferentemente de Koester que acredita ser a tradição meramente um kerigma da comunidade pós-pascal.
l        Não obstante corrija a opinião daqueles que acreditam serem os Evangelhos uma autogeração a partir do kerigma,C.H.Dodd também sustenta a originalidade cristã dos mesmos uma vez que acredita serem os evangelhos não mera evolução do kergima,mas uma explicação do mesmo.A partir do kerigma,conforme está descrito em Atos 10.37-43,Marcos teria inventado o gênero literário “evangelho”,servindo de modelo para os demais escritores.Contudo,a identificação da forma evangélica com o suposto discurso kerigmático não pôde ser conclusivamente comprovada.
l        Assim,a criatividade cristã primitiva exclusiva do gênero literário “Evangelho” não pôde ser comprovada.



1.4.2. Modelo Analógico e Gênero Literário homologável em seu tempo

l        Alguns estudiosos acreditaram que à semelhança dos demais escritos neotestamentários,os evangelhos também devem ser classificados em algum gênero literário vigente em seu tempo.A partir daí a busca por paralelismos de gênero literário com os Evangelhos tem caminhado nas seguintes duas direções:

1.4.2.1.Paralelismos Semíticos

l        As seguintes características comuns têm sido apontadas para aproximar os Evangelhos do Antigo Testamento: nos livros históricos não há referência ao autor,narra-se na terceira pessoa e existe uma relação com a tradição.
l        M.G.Kline[8] pensa que foi usado o modelo do Êxodo na narração evangélica,devido sua combinação de narração e discurso.Para D.Lürmann[9] ,Marcos concedeu seu evangelho segundo o modelo oferecido pelo Antigo Testamento,da biografia de um “justo”.N.Perrin[10] observa os detalhes apocalípticos de Marcos e considera esse evangelho como um drama apocalíptico,e o compara com as cartas  do Apocalipse de São João.Para M.D.Goulder[11],os evangelhos têm uma origem litúrgica e pertencem ao gênero do midrash,explicação rabínica do Antigo Testamento.Contudo,os Evangelhos não podem ser catalogados simples e totalmente como midraxe.

                   1.4.2.2.Paralelismos Helenísticos

l        Foi novamente proposta uma analogia com a bibliografia greco-romana. Muitos estudiosos compartilham dessa posição,especialmente os anglo-saxônicos,defendida e elaborada por C.H.Talbert.[12] Talbert estabelece a classificação dos diversos tipos de biografias helenísticas e aproxima os evangelhos de um que pretendia corrigir imagens defeituosas do mestre e apresentar uma forma correta de se vincular com ele. D.E.Aune[13] também entende que os evangelhos são um subtipo da biografia greco-romana,a qual recorre à história de um personagem como lugar  onde se realça suas virtudes e atitudes morais;são tomadas grandes liberdades historiográficas e lhes interessa mais a plausibilidade do que a narram do que sua correspondência com os fatos. As biografias helenistas observam o passado em função dos ensinamentos para o presente,de modo que funcionalmente há uma semelhança importante com os evangelhos,pois os evangelhos são teologia em forma de narrativa;os valores e as crenças cristãs são personificadas e historicamente legitimadas  na pessoa de Jesus. Não obstante, o relato da paixão teve uma importância capital na origem dos evangelhos,pois dele procedeu a trama que articulou toda a obra evangélica.



2.OS EVANGELHOS SINÓPTICOS

A. Definição

    • Os três primeiros evangelhos foram pela primeira vez chamados “Evangelhos Sinóticos” por J.J. Griesbach, no final do século XVIII. O adjetivo “sinótico” vem do grego suno/yij (synopsis), que significa “visão conjunta”. Griesbach escolheu a palavra devido ao alto grau de semelhanças entre Mateus, Marcos e Lucas em suas apresentações do ministério de Jesus. Essas semelhanças, que envolvem estrutura, conteúdo e enfoque, são visíveis mesmo ao leitor desatento. Elas servem não apenas para unir os três primeiros evangelhos, mas também para distingui-los do evangelho de João.

           B. Evidência Sinóptica

    • Mateus, Marcos e Lucas estruturam o ministério de Jesus de acordo com uma seqüência geográfica geral: ministério na Galiléia, ministério na Judéia e o ministério final em Jerusalém. Essa seqüência está praticamente ausente em João, evangelho que se concentra no ministério de Jesus em Jerusalém durante suas visitas que periodicamente fazia a cidade.
    •  Quanto ao conteúdo, os três primeiros evangelistas narram muitos dos mesmos acontecimentos, concentrando-se nas curas, exorcismos e ensinos por meio de parábolas realizados por Jesus. João, embora narre algumas curas significativas, não traz qualquer relato de exorcismo nem parábola.
    •  Além disso, muitos dos acontecimentos que consideramos característicos dos três primeiros evangelhos estão ausentes em João: o envio dos doze, a transfiguração, o sermão profético, a narrativa da última ceia.
    • Ao apresentarem Jesus constantemente em atividade e ao sobreporem ações – especialmente milagres – e ensinos curtos, os primeiros evangelistas criam um clima de ação intensa e ininterrupta. Isso contrasta claramente com o clima mais contemplativo de João, que narra bem menos acontecimentos do que os evangelistas sinóticos e prefere apresentar Jesus fazendo longas dissertações em vez de parábolas curtas ou declarações breves e expressivas.

C. Formação dos Evangelhos Sinópticos

          Podemos distinguir três Etapas ou Estágios na origem dos Evangelhos:

          1.O Acontecimento-Jesus como Origem da Tradição Evangélica Jesuína

l        Jesus surgiu no horizonte palestinense,e anunciava o reino de Deus, centralizando seu ministério em Cafarnaúm,às margens do lago da Galiléia – um ministério itinerante (cf.Mt.9.1;8.20).Historicamente falando, parece não haver dúvidas de que Jesus teve características de mestre e profeta e as pessoas o reconheciam assim (Mc.9.5;10.51;10.17).[14]
l        Ao seu redor se formou um grupo de discípulos,em cujo seio cultivou-se uma tradição das palavras de Jesus[15].
l        A pedagogia popular na antiguidade era muito mais conservadora e se fundamentava nas três instituições-chave:a casa paterna,a sinagoga e a escola elementar. Nas três,a aprendizagem tinha um elemento central: a memorização. A cultura da memória e da tradição impregnavam os discípulos de Jesus. Mais ainda uma consideração formal da tradição evangélica descobre,em grande parte,que fora marcada para poder ser memorizada com facilidade e transmitida com fidelidade: Jesus faz uso de imagens,metáforas,simbolismos,expressões enigmáticas e penetrantes,uma forma plástica de falar que se grava na memória com maior facilidade do que as abstrações. Por suas características formais,por sua concisão e força,por seus próprios aspectos enigmáticos,o ensinamento de Jesus revela,com freqüência,sua intenção de ser repetido e memorizado.

          2.A Reinterpretação da Tradição Jesuína na Comunidade Pós-pascal

l      O que aconteceu com a tradição pré-pascal que começou a formar-se das palavras e atos de Jesus?A comunidade pós-pascal a conserva,transmite e também reinterpreta essa tradição.
l      Para a comunidade pós-pascal,não bastava recordar os ditos e atos de Jesus,pura e simplesmente,pois era preciso ouvi-los no presente.Por isso ela atualiza a tradição recebida.
l      Diversos fatores sociais exigiam a adaptação e a atualização da tradição evangélica.[16]A própria tradução do aramaico para o grego implicava uma adaptação lingüística.Também se fizera necessária uma adaptação social à medida que algumas tradições nascidas no ambiente rural da Palestina se aclimatavam á civilização urbana.Era inevitável também uma adaptação cultural,porque os costumes semíticos da Palestina não eram iguais aos vigentes nos grandes centros helenísticos;por exemplo,a versão marcana das palavras de Jesus sobre o divórcio apresenta a possibilidade não somente de o homem abandonar sua mulher (conforme a versão semítica mateana,19.9;5.31-32),mas,também,a possibilidade de a mulher abandonar o marido,o que corresponde aos costumes greco-romanos (Mc.10.11-12).A existência de novas comunidades cristãs com seus problemas particulares e as novas circunstâncias exigiram uma adaptação eclesial.Basta comparar,por exemplo,a versão da parábola da ovelha perdida na versão lucana,que visa justificar o comportamento de Jesus em seu vínculo com os pecadores (Lc.15.4-7),e na versão mateana,obviamente eclesiástica (Mt.18.12-13).
l      Essa tradição atualizada é,não obstante,fiel,pois mantém a vinculação com o Jesus do passado e tem segurança pela presença de testemunhas oculares no período de sua circulação – uma alteração essencial dos fatos,portanto,não seria tolerada nesse processo.[17]
l      No processo de reinterpretação e/ou atualização da tradição jesuína, o cristianismo primitivo fez largo uso do Antigo Testamento,pois sendo judeus,os primeiros discípulos de Jesus tinha o mesmo como sua Bíblia,isto é,como Palavra de Deus,através da qual era fundamental interpretar o evento-Jesus como cumprimento dessa mesma Escritura.A Páscoa,portanto,deu-lhes nova luz e novos olhos para lerem as Escrituras de forma cristocêntrica.
l      Para realizar essa tarefa,a comunidade fez uso das técnicas exegéticas judaicas,as quais são necessárias para compreendermos adequadamente o Novo Testamento e os Evangelhos,uma vez que os mesmos estão impregnados de referências e evocações ao Antigo Testamento,à literatura Judaica intertestamentária e à tradição Judaica.
l      Para o judeu, “o que não está na Torá não está no mundo”,diz um provérbio.Na Bíblia (AT) está tudo e pode-se  encontrar luz para qualquer circunstância da vida;a dificuldade está em descobri-la. Assim se explica esse constante esquadrinhamento dos textos veterotestamentários,próprios da religiosidade judaica.
l      A comunidade pós-pascal atribui às palavras de Jesus o mesmo conceito e autoridade das Escrituras do AT,de modo a interpretá-las e contextualiza-las em situações novas e diversificadas,assim como faziam com o Antigo Testamento. Buscavam nos ditos de Jesus,através de reelaborações e adaptações,luz para novas situações. Dessa forma,às vezes a comunidade faz atualizações das palavras de Jesus que vão além do que historicamente Jesus tinha dito (Lc.4.1-13;Mt.4.1-11;Mc.1.14,15;Lc.4.16ss.).
l      Portanto,a referência ao Antigo Testamento está presente em todos os textos dos evangelhos,porque,tanto para os que estão na origem da tradição – Jesus e a comunidade pré-pascal – como para os que a transmitiram em todas as etapas,era fundamental situar cada episódio da vida de Jesus no plano de Deus e como seu cumprimento. É fundamental,então,na interpretação dos evangelhos,perguntar-se sempre por seu substrato veterotestamentário, considerando-se as técnicas de interpretação do Antigo Testamento no judaísmo intertestamentário.

          3.A Redação Evangélica da Tradição Jesuína

l      Como verdadeiros autores/redatores/teólogos,os evangelistas recolhem e transmitem a tradição jesuína existente na Igreja,a qual fora conservada e reelaborada por ela sob a luz da pós-páscoa.O trabalho redacional dos evangelistas pode ser descrito como segue:
l      Seleção de dados da tradição jesuína oral e/ou escrita: João e Lucas deixam claro que fizeram uso de fontes e que não tinha a pretensão de escrever tudo,mas fizeram uma seleção inteligente e motivada do material que lhes era disponível (Jo.20.30,31;21.15; Lc.1.1-4).
l      Sintetizações da tradição Jesuína: construíram sínteses recolhendo diversas fontes e reelaborando-as com criatividade literária (Mt.5-7;Mt.8.14,15;Mc.1.29-31;7.24-30; Mt.15.21-28 etc.).
l      Adaptações da tradição jesuína às necessidades das diversas comunidades: Uma mesma tradição discursiva ou narrativa é utilizada de modo distinto para atender à situação da comunidade destinatária do evangelista (Mt.18.12-14;Lc.15.5-7;Mt.7.7-11;Lc.11.9-13).

       






 D. Descrição Panorâmica dos Evangelhos Sinópticos

A. Marcos - O Evangelho do Filho de Deus e Messias Sofredor

Autoria: João Marcos (a partir das Reminiscências de Pedro)
Data: 50-60 d.C.
Destinatários: Cristão Gentios (Romanos?)
a)     Marcos tinha claramente um público gentio em mente, por isso explica expressões em aramaico que utiliza (3.17;5.41;7.11,34;14.36;15.34).
b)     Também utiliza expressões que refletem o latim, ou latinismos (12.42;15.16).
c)      Os judaísmos de Marcos são um reflexo do escritor e de sua fonte (Pedro).
Local: A partir das evidências acima mencionadas, Roma tem sido a mais aceita.
Propósito: Revelar a Identidade de Jesus Cristo.
Análise do Livro:

l        Prólogo Temático: O Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. 1.1-13
l        Jesus Invade o Deserto e a Cidade com Boas Novas. 1.14-8.26
l        Jesus Invade a Cidade Hostil de Jerusalém. 8.27-15.47
l        O Epílogo Inacabado (16.1-8)

B. Mateus - O Messiado de Jesus e sua doutrina como a regra do Discipulado Cristão

Autor: Mateus-Levi
Data: 60-70 d.C.
Local: Antioquia da Síria ou Palestina
Destinatário: Judeus Cristãos (palestinenses?), conforme indica o teor judaico do Evangelho.
Propósito: Instrução Catequética da Igreja e Revelação da Messianidade de Jesus
Esboço Panorâmico:
l      O Nascimento e  Preparação de Jesus. 1.1-4.16.
l      O Ministério Público de Jesus na Galiléia. 4.17-16.20.
l      O Ministério Privado de Jesus na Galiléia. 16,21-18.35.
l      O Ministério de Jesus na Judéia. 19.1-25.46.
l      A Paixão e a Ressurreição de Jesus. 26.1-28.20.

C. Lucas – Jesus, O Salvador do Mundo na História da Salvação

Autor: Lucas, cooperador e companheiro de Paulo (Cl.4.14).
Data: 60-62 d.C.
Destinatários: Teófilo/Cristãos Gentios (1.1-4).
Propósito: Fundamentar Historicamente o Evento Cristo (1.1-4).
Local: Grécia, Cesaréia, Alexandria?
Esboço Panorâmico:

I.                   Prólogo: Um Relato Confiável da História da Salvação. 1.1-4.
II.                A Preparação para O Ministério de Jesus. 1.4-4.13.
III.             Jesus Proclama a Salvação na Galiléia no Poder do Espírito. 4.14-9.50.
IV.             Da Galiléia a Jerusalém: O Discipulado. 9.51-19.27.
V.                Chegada ao Destino: Morte e Ressurreição em Jerusalém. 19.28-24.53.





[1]   Exegeta e Historiador do PaleoCristianismo , professor e pesquisador nas áreas de Literatura Cristã Primitiva,Contexto Histórico-Literário, Língua, Literatura, Exegese, Teologia do Novo Testamento e outras disciplinas na área de Bíblia e seu contexto histórico-literário.© todos os direitos autorais desta obra devem ser preservados.
[2]    Essa obra de CARMONA e MONASTÉRIO, constitui a principal fonte bibliográfica para esse texto.
[3]    Das Messiasgeheimnis in den Evangelien,zugleich ein Beitrag zum Verständnis des Markusevangelliums (Gottingen 1901),pg.131.
[4]    No âmbito protestante,G.E.Ladd também fora um dos estudiosos crítico-históricos de linha conservadora a “quebrar o tabú” do método histórico-crítico e sua utilização positiva nos estudos bíblicos evangelicais.
[5]    Cf. J..A.Fitzmyer,A bíblia na igreja,p27.
[6]    The New Testament and Criticism, citado IN: Descobrindo o novo testamento, Walter A.Elwell & Robert W.Yarbrough,p.155.
[7]    Para mais informações sobre os métodos aqui esboçados,veja:Köester,Helmut.Introdução ao novo     testamento: história e literatura do cristianismo primitivo.São Paulo:Paulus,2005.vol.2.; Schnelle,Udo.Introdução à  exegese do novo testamento.São Paulo:Loyola,2005;Silva,Cassio Murilo Dias da.Metodologia de exegese bíblica.São Paulo:Paulinas,2003.2ª Edição.;Wegner,Uwe.Exegese do  novo testamento.São Paulo: Sinodal/ Paulus,2002;Mainville,Odette.A Bíblia à luz da história:Guia de exegese histórico-crítica.São Paulo:Paulinas,1999.
[8]    The Old Testament Origins of the Gospel Genre em The Westminster Theological Journal XXXVIII (1975-1976),1-27.
[9]    Biographie des Gerechten als Evangelium.Vorstellungen zu einem Markus-Kommentar em WuD NF14 (1977),25.30
[10]  N.Perrin,The literary Gattung Gospel – some observations em Exp Tim 82 (1970),4-7.
[11]  Midrash an Lection in Matthew (Londres 1974).
[12]  What is a Gospel? The genre of the canonical Gospel (Filadelfia 1977);Biographies of Philosophers and rulers as Instruments of Religiious Propaganda in Mediterranean antiquity,em ANRW II.16.2,1619-1651.
[13]  The New Testament in its Literary Environement (Filadelfia 1986).
[14]  Somente após a destruição de Templo de Jerusalém,em 70 d.C.,quando surge,então,um judaísmo normativo e mais uniforme,centrado na lei,o termo “rabbi” se transforma num título e surge a ordenação de rabinos.Antes disso,o termo tem sentido meramente não-titular de “meu senhor”, “meu mestre”.Assim,portanto,o aplicavam a Jesus.
[15]  Tanto nos círculos proféticos do judáismo como ao redor dos mestres reuniam-se discípulos e formavam-sem tradições.
[16]  G.Segalla,Panoramas del Nuevo Testamento (Estella 1989),205.
[17]  A intenção de garantir a tradição ilustra-se na fórmula receber-entregar,empregada tecnicamente pelos judeus para assegurar a fidelidade da transmissão.Paulo,por exemplo,faz uso dessa fórmula no uso de duas tradições evangélicas (1Co.15.3;11.23).